domingo, 21 de agosto de 2016

ROTINA

Ele enfim foi se deitar após perder as contas dos cigarros fumados e das doses de vodka consumidas. O sol já dava as caras pela fresta da janela fechada e o seu cachorro estava mergulhado em um sono tranquilo. Era apenas mais um fim de semana comum na sua vida após ela ter ido embora alegando que o amor acabara.
Na segunda-feira feira acordou cedo, fez um café, banhou-se e foi para mais um dia de trabalho para encarar pessoas que não lhe traziam nada além de conversas vazias e cumprimentos cheios de hipocrisia. Era um serviço chato e sem perspectivas, que tinha como agravante as cobranças sem fim de um gerente magro e arrogante. Era necessário que ele se segurasse, afinal era aquele dinheiro que garantia um teto, comida, maços de Marlboro e as garrafas de vodka barata, sem esquecer da ração do velho labrador que o acompanhava há alguns anos.
Ele vivia de lembranças, de quando o velho cão ainda podia correr e fazer festa para recebê-lo, dos tempos em que a filha o via como exemplo ao invés de um bêbado fracassado, coisa que ela fazia questão de deixar claro. Nos raros encontros com a garota, que já planejava a festa de debutante, ela apenas o lembrava dos valores com os quais ele teria que arcar dali a uns meses.
Ele já tinha acostumado-se com uma cama vazia e insossa que apenas servia para acolher seu corpo desajeitado após cada noite de doses e fumaça. Houve um tempo que aquela cama foi palco de noites de amor e testemunha de palavras cheias de cumplicidade, hoje ele mal troca os lençóis.
As semanas foram passando e nada de novo acontecia na vida dele. Até que um dia chegou do serviço e antes de tirar os sapatos deparou-se com a cena do velho labrador estirado, não estava dormindo, apenas tinha se entregado a idade e as debilidades da saúde que assolavam-no há alguns meses. O homem recolheu o corpo do cão com certa dificuldade e o levou para o fundo do quintal, chorava baixo enquanto cavava aquela que seria a última morada do velho companheiro que criou desde de filhote.
Ele pensou em não ir trabalhar na manhã seguinte. Sentia-se mal com a ausência do cão, porém decidiu enfrentar as agruras do escritório cheio de gente que valiam menos de um por cento do que o labrador que o deixara na noite anterior. Trabalhou, foi cobrado, conversou sem vontade e foi pra casa.
Após mais algumas semanas, notou-se que ele não aparecia no escritório há vários dias. A mulher que ele ainda amava notou que a pensão não foi depositada. A filha não foi chamada para acompanhá-lo para acertar a primeira parcela da festa de quinze anos. O dono do bar não vendeu mais nenhum maço de cigarro para aquele tipo meio atrapalhado de óculos e barba por fazer.
Passaram os dias e o cheiro se espalhava com intensidade. Os vizinhos sentiam um odor forte e incômodo. Vinha da casa 60. Tinham que arrombar a porta. Chamaram a polícia e assim foi feito. Ele estava sem camisa, descalço e com uma calça do seu time de coração. No braço via se tatuado um coração humano com o nome da ex-mulher e da filha dentro. Na mesa um cinzeiro com várias bitucas e um copo sujo de vodka. Ao chão um caderno com velhos poemas escritos a mão e uma esferográfica sem tampa. Não havia sinal de violência, veneno ou uso de drogas. Comenta-se que nunca explicaram o que houve e muitos dizem que ele morreu foi de saudade.

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